terça-feira, 24 de setembro de 2019

Diário de bordo - A mancha cor de rosa no fundo negro da Guernica

- Não conheço o Picasso professor.
- Ah eu conheço muito bem, professor. Tenho um livro e tudo, assim grande, a capa muito bonita, azul escura com riscas vermelhas. É daquela editora, de livros de pintura, aquela muito conhecida, como se chama...
- A Taschen?
- Isso mesmo, a Taschen! Tenho muitos livros dessa editora.
- Trazes Florbela? É que do Picasso só conheço a Guernica, professor. Podes trazer Florbela?
- Claro! 
- Faça isso Florbela, traga para vermos aqui na aula e investigar um pouco mais do trabalho dele. 
- Então vou trazer!
- Boa, que bom! Mas professor, e a Guernica? Já a viu ao vivo professor?
- Sim, sim, é tremenda, enorme, tive a sorte de já a ver duas vezes, em Madrid. É do tamanho, deixa cá ver... olha, do tamanho daquela parede ali ao fundo.
- Uau, é mesmo enorme. E é bonita? 
- É muito bonita, imponente. E sabes, ele não teve medo de deixar os riscos a lápis dos múltiplos rascunhos que fez, como se nunca a tivesse terminado. Sinto que essa intenção talvez tenha sido como que um aviso que nos deixou a nós, às gerações que vieram a seguir a ele, em relação àquilo que representa, a guerra, o sofrimento, a violência, que infelizmente continua em muitos lugares do mundo. 
- Acho que percebo, professor. Eu tenho, sabe, tenho medo de me aproximar de pinturas assim tão importantes. Tenho medo de lhes tocar sem querer e as estragar, ou de repente de pegar num lápis, num pincel com tinta, e as estragar. 
- Ora essa Maria, não tens de ter medo. A arte é feita para nos aproximarmos dela, é uma parte daquilo que somos.
- Sim, mas os loucos são menos do que os outros professor. Acho que nascemos sem direitos, ou melhor, com menos direitos, pelo menos assim o senti durante toda a vida. 
- Não digas essas coisas Maria, não és louca e muito menos tens menos direitos que as outras pessoas. E quem te disser o contrário nem merece que percas um segundo a pensar nela.
- Mas professor, quem sabe se essas pessoas não têm razão? Imagine que de repente um maluco, um louco, se lembra de pegar num pincel com tinta e fazer um risco, um desenho, uma macha, por cima de uma obra importante como a Guernica. O louco não consegue controlar essa vontade e acaba mesmo por fazê-lo se tiver próximo da pintura. Se fosse outra pessoa que não o louco, mesmo que tivesse essa mesma vontade, não o faria porque não era louco. Mas imagine agora que essa mancha era mesmo real. Ora, quer tivesse vindo de um louco ou dessa outra pessoa, a macha seria a mesma, o castigo seria o mesmo, não interessaria de onde tinha vindo essa vontade, se seria racional ou irracional. Portanto, professor, como a mancha é igual, nós, os loucos, que não controlamos a vontade de a fazer, não podemos aproximar-nos dos quadros. 
(silêncio)
- Maria... mesmo entendendo o que dizes, eu vou continuar a acreditar que todos temos direito a aproximar-nos de um quadro, independentemente da sermos, como tu dizes, um louco. 
- Pois eu cá prefiro não o fazer, professor. Olhe, ainda ontem sonhei com a Guernica, sonhei em pintar no seu fundo negro uma mancha cor de rosa. Peguei no pincel e no tubo de tinta, já com essa vontade a dominar-me. Só não concretizei a minha vontade por estar longe. Por isso professor, como lhe disse, não me hei-de aproximar nunca da Guernica por poder enchê-la e manchas cor de rosa. 
- Percebo-te, mas em tua defesa, em defesa dos "loucos", como tu te auto-intitulas, há por ai muitos quadros que mereciam uma dessas tuas manchas cor de rosa. E olha que talvez a Guernica pudesse ser um deles.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Diário de bordo - o regresso


O banco do autocarro sem ar condicionado queimava as costas que a camisa de inverno cobria com a sofreguidão da contradição, infinitas vezes avisada pela mãe, de estar a ser erradamente usada durante o verão. O sol amarelo, que adorna o início das tardes de fim de Agosto, anunciava sem precisar de falar a sua presença, a de um corpo celeste, uma estrela finita que no tempo que tem de vida não hesita em recordar ao frágil homem a sua força.
O sono, esse, acompanhando o silêncio da estrela maior, pesava mais no corpo, que caído num banho de suor meloso, se digladiava entre a vontade em se manter hirto e a queda abrupta na escuridão. A aula permanecia no limbo que habitava a fronteira entre os dois.
Os sapatos rosa com laçarotes de veludo entraram na sala. Quebraram a ânsia de perceber se a Maria voltaria ao curso. Felizmente, assim foi, e as vozes, boas e más, haveriam de ser uma vez mais colocadas no seu devido lugar.
O reencontro é uma de duas formas que adornam a surpresa, desta feita, uma que acaba sempre por nos ser familiar, ao contrário da outra, que implica a singularidade da novidade.
Todavia, quando o reencontro deixa de ser surpresa, ele passa a ser banal. Um pouco como as campanhas do regresso às aulas, que se entranham na felicidade das férias e relembram aos putos que mais um ano virá, e que a efemeridade é uma constante incontrariável. O sol pode ser quente e gordo mas acaba sempre por desaparecer para depois voltar.
O mesmo sentimento ocorre ao sabermos antecipadamente, numa escolha racional, que vamos ver a mulher que amamos naquele sitio, naquele instante, quando já repetimos infinitas vezes num loop mental o beijo que lhe damos e o toque que dela recebemos. Tal passa a ser, embora genuinamente bom, a mera conclusão dessa ânsia, ao passo que a surpresa de a avistarmos sem que tal fosse anunciado é a tal chama ardente que tantos loucos falaram e tentaram, sem nunca o conseguirem, descrever, pois é uma impossibilidade outra coisa senão o sentir.
Isto tudo para dizer que o Incluir está de volta e que estou feliz de poder mais uma vez ter sono e vestir camisas quentes na altura do ano em que as mesmas deviam envolver traças e pó de armário. E os diários de bordo estão definitivamente, com a surpresa da familiaridade do regresso, de volta. 

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Diário de bordo - O Ferrari vermelho


Viajava eu para Santarém de autocarro, quando constato uma curiosa analogia tida
com um acontecimento daquela manhã.
O Fernando terminara uma pintura de um Ferrari, que a alta velocidade percorria uma estrada cinzenta, ladeada de um campo de verdes pinceladas. Confessou-me, a meio da obra, que escolhera retratar aquele fórmula 1 pois sonhava um dia conduzi-lo, sentir as forças G que inémeras vezes tinha ouvido falar nos canais de desportos motorizados. No final da aula, como acontecia todas as semanas, pegou na sua bicicleta, e lá foi ele, para sua casa.
Já eu, lia um livro de predições relacionadas com a exploração espacial que, ainda que acentes em bases científicas, acentavam na incerteza de um futuro extremamanete longínquo e imprevizível, como é disso exemplo, a descrição das naves que transportavam astronautas para o espaço longínquo, com paragens exporádicas de reabastecimento energético em corpos celestes que habitavam eternamente os vazio intergalácticos.
Mas a verdade é que, infelizmente, por mais que o Fernadno queira, muito dificilmente irá algum dia conduzir o tal o ferrari vermelho, de que tanto falara e idolaterara, ao ponto de o representar numa tela. E por mais que o desconhecido do espaço sideral me preencha a imaginação com uma força tremenda desde que me lembro de folhear livros de astronautas, a verdade é que nunca percorrei uma dessas auto estradas espaciais num desses cetácios de metal carregados de combústivel. O Fernando tem a sua bicicleta, eu tenho o meu autocarro.
No entanto, o sonho é certamente uma das únicas regalias igualitárias que a nossa existência efémera acarreta. A noção de que estamos impossibilitados de os cumprir, todavia, é a maldição acente na certeza de que não temos a eternidade do nosso lado.
Mas, e tal como o sonho, é um alívio sabermos que temos sempre o "mas", existe sempre a possibilidade de contrariar a tendência da impossibilidade racional do sonho. A Arte é um desses "mas".
Pelo que tenho viso nesta minha aventura enquanto professor do "Incluir", a sensação que tenho é a de que a dádiva existe na possibilidade de manifestar plasticamente na tela a esperança de cumprirmos sonhos impossiveis. Pintar um ferrari, um barco à vela, a lua, um gato alado ou um elefante que fala. Munidos com materiais tão reais e concretos como tintas e pincéis podemos transfigurar-nos em alquimistas de devaneios.
Se para mim aquele autocarro e aquela viagem de 15 minutos foram idênticas a uma acoplagem numa estação espacial de Marte, ou de uma Lua de Saturno, a viagem de bicicleta do Fernando, foi uma verdaderia corrida numa pista de um circuito mundial de Fórmula 1.
E ainda por cima, a bicileta dele nem era vermelha.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Diário de bordo - O zangão e o apiconauta


Naquele dia , o grupo saiu da sala e pintava aquilo que os rodeava, numa das primeiras aulas fora do contexto de oficina interior. Pintavam as árvores, as fachadas, as portas, os telhados, as estátuas. O André, a Florbela, a Marta, o António, o Fernando e o João. O meu papel, era o de ir saltitando pelos vários trabalhos, tentando, com o mínimo de intervenção directa, ajudar a que tomassem um bom rumo.
Atingida a etapa dos retoques finais da tela, dá-se um curioso, ainda que ligeiro, episódio. Uma abelha, de tamanho generoso, pousa no peito do André, mesmo no centro da camisa às riscas azuis claras que naquele dia vestia.
A surpresa de vê-la de repente pousar incutiu a urgência do meu aviso.
- André, olha aí, tens uma abelha enorme mesmo aí no meio da camisa, vê la não deixes que ela te pique!
- Não é uma abelha, professor, é um zangão. É um macho. É maior que as abelhas, e não tem ferrão, não pode morder-me.
Tramou-me com esta. Mas que raio, que outro tipo de resposta poderia eu esperar? Afinal, a grande paixão do André, era precisamente o universo do mel, a apicultura, paixão essa transitória do seu pai, e porventura de gerações a ele antecessoras. Já haviamos falado desse seu gosto, deu para ver, pelos pequenos gestos e olhares, como ele falava daquilo com a paixão que alenta quem descobre desde cedo aquilo que nos impede de sentir o peso das outras coisas que menos gostamos de fazer.
De repente, já o zangão havia há muito retomado a sua odisseia aérea, começou a chuvicar. Estavamos a pintar com acrílicos, não convinha que as telas se molhsassem. Disse ao André e aos outros alunos que devíamos levar de volta as telas e o cavaletes para o atelier.
Assim o fizemos. A maioria do caminho foi feito em silêncio. Não daqueles que nos transtornam e que petrificam o deslocar dos segundos, mas sim dos que tranquilizam, dos raros, que só conseguimos ter com uma porção mínima com aqueles que nos vamos cruzando ao longa da nossa caminhada.
O André é seguramente um dos únicos que conheço a saber diferenciar um zangão de uma abelha, a saber dizer que um zangão não morde (Palavra bem curiosa essa, ter alguem zangado que nao morde). Ao longo destes meses, tenho vindo a aperceber-me que os meus alunos têm esta aptidão de aglomerar saberes que desconheço outros terem. Normalmente, nós só queremos ouvir, integrar e debitar os grandes feitos e conhecimentos. Simultaneamente invejo e admiro a capacidade de amar as pequenas coisas que a maioria dos meus alunos acalenta. Estamos habituados a que esses tais grandes feitos sejam o nosso combustível. A acumulação de canudos é uma obrigção indispensável à  diambulação pela e na sociedade. Os feitos e estratégias que alcançam os bens materiais são óbvios e intrínsecos a qualquer um, aliás, esses bens são o sumo supremo que a nossa existência se vê a exprimir. Saber a diferença entre uma abelha e um zangão é uma mera atribuição causal à inutilidade do saber.
Permitam-me que discorde. Muito embora ninguém viva sem dinheiros, metal, tecladose papelada, não podemos deixar nunca de alimentar a nossa parte que atenta e se expanta com zangões sem ferrões. Perigosamente nos temos tornado ciborges da materialidade objectiva. E embora o pão da mesa seja servido pela radcionalidade, sem ninguém com quem o partilhar e o apareciar de pouco serve. Sem as trivialidades da nossa existência mais abstracta, sem a "inutilidade" das pequenas coisas, então aí somos nós a tornar-nos diminutos.
Serei ridículo? Pois bem, assim seja. O André, a Marta, a Florebela, os meus alunos são singularmente e independentemente ridículos. Que o sejam eternamente. E que cada vez mais me ensinem a sê-lo com maior convicção. A certeza que tenho é que sou cada vez mais eu o aluno e eles os mestres. É a grande lição que tiro desta minha aventura, mesmo sabendo que felizmente o fim dela está longe de chegar.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Diário de bordo #12 - 23-01-2017 - A minha vida adulta por um carro



A maioria dos meus alunos vem de autocarro. Um de bicicleta. A menor parte divide um par de carros, muito embora suponha que não o tenham comprado.
Em conversa com um conhecido, apercebo-me do quão elaborado é o significado de comprar um automóvel. Deixem-me resumidamente tentar exeplicá-lo.
Esse conhecido havia começado a ganhar dinheiro. Uma quantia generoza, realtivamente grande, inclusivé, para o contexto generalizado. O suficiente para poder comprar um carro.
Esse individuo afirmou que a ele sim, os pais souberam educar. Agora que tinha comprado um carro, finalmente os valores que lhe haviam sido incutidos tinham sido materializados em resultados positivos e práticos. Que agora, com vinte e poucos anos, era um adulto, termo que todos os outros indíviduos com a mesma idade deveriam fazer, para, evidentmente, serem os tais adultos.
Portanto, e conseguentemente, análogamente, a moioria dos meus alunos não é adulto. Eu próprio, também e já com vinte e poucos anos, não sou adulto.
Resta-me, portanto, ser outra coisa.
Mas deverá a marca do carro influenciar o tipo de adulto que alguém é, nessa analogia metafórica efetuada por esse indíviduo?
Por exemplo, um porche em primeira mão, representará um adulto respeitável e com classe? Um fiat punto em segunda, reprenta um adulto-modelo formiga, que trabalha num estabelemciemnto género call center? E um Wolkswagen, será o modelo do adulto ressabiado, que ostenta um carro demasiado grande que herdou de um viúvo idoso rico, e do qual não se livra por não encontrar um melhor nme quere um pior?
E o preço? Ganhar mais, é sinónimo de ser mais adulto? Quanto mais ganhamos, mais respeitados somos? Um gestor é um Homem maior que um condutor de táxis? Uma mãe nos meses que antece e precede o parto do seu filho, deixa de ser adulta? Um "H"omem é mais trabalhador que um "h"omem?
Muito honestamente, o ridículo não é existir um sistema qur se baseia em valores capitalistas. O que para mim é ridículo é o facto de indivíduos de vinte e poucos anos medirem o sucesso em números e marcas, a educação em estatuto e os valores com cifrões e chavões no final.
É engracado que a palavra "valores" tem realmente dois sentidos distintos, um deles quantitativo o outro qualitativo. Eliminando um, normalemnte, os indivíduos como o mencionado acima tendem a fazê-lo com o segundo, restanto o pimeiro, o dos números.
Sobra-me por fim tecer uma última consideração, em honra ao indivíduo com quem estabeleci o diálogo no qual este diário de bordo se baseou.
É preciso ter cuidado ao comprar carro, ou melhor, ao associar essa compra de carro. Há aqueles que só têm dois lugares, e mutias vezes o do copiloto vai vazio. Já quem vai de autocarro, como a maioria dos meus alunos, ainda que possa comprar o carro, e ser adulto, nada contra, saberá sempre ir de autocarro, e irá sempre poder ir acompnhado no mesmo, por inúmeras outras pessoas, que não têm necessidade de serem, e ainda bem, adultas.
Epá e que se lixem, mas lixem mesmo ,esses adultos que misturam carros com valores. Porra, mil vezes os putos. Os, perdão, "V"erdadeiros, "P"utos, que andam, e não se importam, de autocarro.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Diário de bordo #11 - 19-01-2017 O ciclista louco em vias de extinção


Tomemos por momento a figura do louco. Será ele capaz de conduzir uma bicicleta?
Terá o louco a decência de se julgar são o suficiente para percorrer uma distância em Quilómetros, de viajando, ter a capacidade do Homem "normal" de apreciar a paisagem que o vai ladeando e avançando em sentido inverso ao do movimento das rodas da bicicleta que, vá lá saber-se porque devaneio inexplicável, aparenta conseguir guiar?
Os loucos devem estar fechados em casa. Trancados dentro de cimento. Betão não, pois é mais perigoso, perigoso demais para um louco. Um louco não sabe lidar com betão, nem com madeira, nem tão pouco com tijolo. O louco só sobrevive no cinzento plano do cimento.
O louco não deve percorrer quilómetros mas sim metros. A escala de vida que o louco percorre deve ser curta. Não excessivamente curta, não vamos querer ser preconceituosos para os loucos, mas curta o suficiente para não nos darem muito trabalho a médio-longo prazo.
O louco não deve medir nada por escalas. Ele meramente se deve deixar cingir a tomar comprimidos e acatar ordens.
O louco não guia, é guiado. Seria impensável considerar um louco com vontade. A vontade é só para os outros.
Ora senão vejamos estes o quão diferentes e melhores são estes "outros", os tais que guiam os loucos, os sábios, os inteligentes e os "normais". Eles conduzem o seu carro para o trabalho, apreciam paisagens com afinco, muitas vezes tendo inclusive a inteligência, a capacidade incrível de observar essas tais paisagens, no mesmo dia, vejam só, tão diversas como casinos de Las Vegas ou florestas tropicais da América do sul, isto porque os Homens "normais" têm acesso a redes sociais, à Internet, a um pc, tudo impossibilidades para um louco. Que parvoíce viajar e gastar dinheiro para um sítio tão longínquo quando podemos estar de pantufas a observá-lo interminavelmente? Quanto muito, um louco tem o direito de observar paisagens de livros que lhes são entregues, por, ora nem mais, pelos Homens "normais".
A escrita. O Homem "normal" tem essa incrível capacidade, a de escrever. Nem digo tanto prosa ou poesia, isso nos dias que correm são documentos pré históricos. A história nova é da escrita virtual, a de poucas frases e palavras encurtadas. Que inteligentes e sobretudo práticos que são estes novos Homens "normais", poupam tempo, dizem o essencial em meia dúzia de palavras, aprimoraram aquilo que antes demorava tanto tempo, dava trabalho e para pouco servia.
E como podria esquecer-me da conquista suprema deste novo Homem "normal": o assassínio do romance. Ser romântico? Só se for louco. Hoje, com a nova história do virtual, basta escolher com a ponta dos dedos. Curioso, ainda há umas décadas, o toque com a ponta dos dedos servia precisamente o mesmo propósito, o da conquista amorosa. No entanto, agora tocam-se em ecrãs, ao passo que antes era em pele. Felizmente que isso mudou, sabe-se lá que sítios sujos tocou essa pele. Mais vale usar os dedos para escolher alguém que saibamos de antemão ter uma pele limpinha e se possível virgem, um ecrã de telemóvel é conhecido por ser extremamente assiado.
Enfim, resta-me, em jeito de contraponto, falar de um louco que conheci, muito estranho, cheio de hábitos que se contradizem então compreendo como os tem.
O Fernando, o ciclista. Querem la ver que este homem "louco" conduz uma bicicleta? Que se deslocava medindo quilómetros? Centenas de quilómetros?
E vejam, mais grave que isso, ele afirma a pés juntos apreciar paisagens nesses seus passeios. O parvo, vejam lá, prefere chatear-se a sair de casa, e possivelmente apanhar com todas os aborrecidos adereços meteorológico em vez de ir a um pc ou smartphone, só para apreciar uma paisagem "ao vivo".
Mais grave. O Fernando escreve poesia. Só há dois tipos de pessoas que escrevem, ou escreviam, poesia. Os mortos e os loucos.
Mas o que me espantou mais ainda, mais que tudo, uma das coisas que ultimamente mais me tem deixado interrogado, vejam lá bem, a parvoíce, a indecência, foi vê-lo apaixonar-se.
Verdadeiramente apaixonado, pois apesar de o estar, disso eu tenho a certeza, já cá ando há uns anos, pelo menos 26, sei ver quando um louco se apaixona, estava apaixonado e não o dizia a ninguém. Guardava para ele. Imaginem-no, ao louco, ao parvo, de madrugada a não conseguir dormir por pensar na sua amada, a acordar cedo, mais cedo, se fosse necessário, seria o primeiro Homem a acordar em todo o mundo, só para te uma centelha de vislumbre dela, sem ser num ecrã, ao vivo, que só da mais trabalho, mas só para que o rosto dela fosse uma presença e não um sonho, para sentir que se estendesse o braço lhe tocava, ainda que por vergonha, não o fizesse. Um louco apaixonar-se devia ser proibido. Pelo menos é o que me dizem. Aliás, dizem-me muita coisa, mesmo muita, daquilo que deve ser, principalmente dizem-me sempre tudo o que deve ser, particularmente o que devem ser as pessoas, quais devem ser as diferenças entre um Homem "normal" e um Homem "louco".
Desconfio que se mostrasse este texto ao Fernando ele me diria depois de o ler com afinco, calmamente, ao seu jeito, que só tinha certeza de uma coisa.
Que esses senhores e senhoras, os que dizem que as coisas "Devem Ser" são, eles sim, os verdadeiros loucos. Que é o amor que cura a loucura, ou pelo menos o que nos impede de enlouquecer.
Bem, eu, honestamente, se ele me dissesse tal coisa. estaria confuso.
Mas devo admitir. Dá-me um gozo tremendo ter um aluno destes, como o Fernando, o ciclista, um verdadeiro louco em vias de extinção, um daqueles que se apaixonam. Que se apaixonam a sério. Dá vontade de fazer mesmo não é?

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Diário de bordo #10 - 16-01-2017 Colagens e loucos da noite



Escrevo já perto do fim. Na hora que este texto toma a sua forma, falta somente uma aula para terminar esta minha aventura de um ano no projecto “Incluir”. Não sei até quando continuarei estas incursões pelos diários de bordo dentro da caverna, e afirmo com certeza  que os próximos serão diametralmente diferentes por nascerem numa fase posterior ao fim. O que serão, não sei.
Para já, este é uma colagem. De uma série de eventos, adjacentes à hora de relógio em que ocorreram, adjacentes ao prazer de os ter tido.

  • 08:52 - Entro no café, com a minha mãe. É ela que me dá boleia de casa, da aldeia, até à cidade, ao convento. A viagem foi desprovida de diálogo. No dia anterior, houve uma discussão que fomentou o tão conhecido “tratamento silencioso da progenitora”. Dela, apenas o som de três palavras, já dentro do café,  “é o habitual” adornadas de uma interrogação “?”. A minha voz,  exteriorizou somente um “sim” seguidas de reticências (“...”) silenciosas.
  • 09:35 - Chego atrasado. Os alunos esperam-me no corredor do convento. Está frio, a maioria está agasalhado. O Fernando, enérgico como habitualmente, percorre o corredor de um lado ao outro. Cumprimento-os uma a um, com um aperto de mão. Até às minhas alunas o faço. O que para mim é estranho, pois normalmente, quando são mulheres portuguesas de sangue quente, tomo-as por dois beijos no rosto. Já as nórdicas, pelo menos nos primeiros contatos, não o fazem. Trata-se de um factor cultural, penso eu Mas não se impondo esse fator cultural no que toca à  condição de mulheres portuguesas, latinas, das minhas alunas, o que impede, então, essa maior proximidade? Será uma mera formalidade que inconscientemente impus a mim próprio? Ou um mero despejo de uma luta interior entre a emoção e arazão?
  • 10:47 - Dois dos alunos chegam atrasados do intervalo, supostamente de 10 minutos. Já é uma prática a que ambos recorrem frequentemente. A enfermeira dá-lhe um raspanete. Um dos dois, o André, conta-me depois que nos tempos em que estudava História, na faculdade, saía com vontade de entrar no desconhecido da noite, com vontade em se mostrar aos loucos que a habitavam, de tentar perceber se esse era realmente um universo alternativo, onde quem nele mergulhasse se transfigurava. Imaginei o André, durante os minutos de  intervalo que teve a mais, a percorrer essa construção mental, a mesma que eu próprio muitas vezes ansiei, e ainda frequentemente anseio, conseguir percorrer. E não evito o sorriso escondido no canto da minha boca, de quem entende o quão bom é adiar ou mesmo descartar um compromisso.
  • 12:09 - Chego à paragem de autocarros, tenho 6 minutos para comprar o bilhete para Lisboa. Tenho a sorte de na fila nunca estarem mais de duas pessoa. A senhora por detrás da vitrine, a vender os bilhetes, é a mesma de sempre. Raramente me dá os bons dias, e raramente me olha nos olhos. Muitas vezes fala com uma outra senhora que se encontra por detrás de outra vitrine, enquanto procura no programa informático da rede de autocarros pelo autocarro ao meio dia e um quarto que vá para o Campo Grande. e cujo bilhete me passa e vende. Assim que o compro, dirijo-me para  ao expresso. Não consigo mais uma vez evitar um esgar num dos cantos da minha boca, um esgar de saudade, por saber que eventualmente este pedaço da minha rotina vai cessar, deixarei de ver e cumrimentar a senhra que me vende bilhetes de todas as vezes que vou para lisboa, ainda que ela raramente me dirija o olhar ou sequer fale para mim.  
  • 12:43 - Na auto estrada, paro de ler, o sono arranha, e nem os três cafés que bebi nessa manhã o acalmam, nem tão pouco fazem esquecer a lembrança da existência da  minha veia notívaga, a mesma que me impediu de adormecer na noite anterior antes das três da manhã. Às vezes é um raio de uma mania de merda, esta de sonhar acordado, a de ter saudades das pequenas coisas. No fundo são elas que nos tiram o sono...